Baptismos

O ritual de baptismo a caloiros é uma prática bem conhecida e generalizada pela Academia do Porto.
Quase todas as faculdades têm uma cerimónia de baptismo com os seus caloiros e as que não a têm, por norma participam no ritual de baptismo feito durante a Semana de Recepção ao Caloiro da Academia do Porto organizada pelo Magnum Consilium Veteranorum (que começa com uma Serenata do Caloiro e acaba com a Latada/Juramento/Baptismo). 

A ideia geral por trás desta actividade é a de que o caloiro, após uns primeiros tempos de contacto com a praxe académica na sua faculdade, seja "apresentado" à cidade no cortejo da Latada e, depois disso, "consagrado" como caloiro da Academia com respectivo baptismo na fonte dos Leões.

Se os cortejos das latadas constituem uma importação de um costume de Coimbra que nunca teve implementação no Porto até meados dos anos 80 do séc.XX, já os Baptismos são alvo de situação praticamente inversa: não tendo implementação generalizada em Coimbra até meados dos anos 80, encontram reflexos no Porto praticamente ininterruptos desde os anos 40/50.

Neste aspecto assiste-se mais uma vez à importância disruptiva que os Lutos Académicos tiveram nas suspensões e importações de tradições nas academias portuense e coimbrã. 
No caso concreto dos rituais de baptismos a caloiros, será relativamente consensual que estes terão provavelmente surgido na sua primeira forma em Coimbra, onde alguns veteranos conduziam então alguns caloiros ao Largo da Portagem e lá, num chafariz ou fonte, despejavam-lhe água pela cabeça. Esta prática parece inserir-se mais no contexto das investidas, como resultado de meros caprichos dos veteranos, e não tanto como algo revestido de especial simbologia ou pompa organizacional.

Se tal prática nunca se generalizou nem ganhou verdadeira escala em Coimbra até o retomar das tradições académicas nos anos 80, já no Porto, pelo menos pela mão do Orfeão Universitário do Porto e no mínimo desde finais dos anos 40/inícios de 50, o ritual de baptismo começa a ser institucionalizado como tradição.

Baptismo Orfeónico. O Orfeonista com a colher é Flávio Serzedello,
considerado antigo Dux Veteranorum do Porto. in Ilustração da revista Orfeão de 1957.


Alexandre Miranda, orfeonista, na Revista "Orfeão" em Abril de 1957, num artigo intitulado de "Praxes e Baptismos no Orfeão Universitário do Porto", partilha que:

"Estas coisas de praxes são sempre usanças a que aqueles a quem está entregue a tarefa de velar por elas, costumam apelidar, enfaticamente, de «muito antigas...».
E no dizer-se que são «muito antigas», alongando-se a pronúncia — quanto mais melhor — das duas últimas sílabas, encontram os veteranos e doutores que fazem cumprir essas praxes o melhor fundamento da sua razão de ser e, quase sempre, o único documental histórico. A origem dessas tradições é de boa norma filiá-la sempre nas brumas do passado, para assim se dar a entender ao caloiro que, pelo facto de serem coisas vindas dos maiores e de remotas eras — quanto mais remotas melhor — é mister cumpri-las...

Destes costumes não há nunca documentos escritos do que constam e da maneira como se fazem cumprir e nisto reside, segundo o abalizado ver dos doutores, uma das grandes virtudes da praxe que é de tradição, no verdadeiro sentido da palavra.

Não há dúvida de que as mais interessantes e características de todas as praxes são as que vamos encontrar nos ambientes estudantis, todas elas constituídas por um conjunto de actos e cerimoniais em que, misturada com uma certa austeridade, existe uma marcante graça.
O Orfeão Universitário do Porto tem também as suas praxes... e originais que elas são.

O estudante que, após o seu exame de voz, ingressa no Orfeão não tem jus, desde logo, ao nome de orfeonista, claro está, praxisticamente considerado. É antes mimoseado com o apodo de caloiro ; e neste ínfimo degrau das hierarquias praxistas há-de sofrer e penar sob o poder dos velhos. Logo no início do ano começa a ouvir, com os olhos muito arregalados, estranhas e atemorizantes histórias de caloiros a quem aconteceu isto e aquilo, por não serem presentes e deligentes na montagem e desmonta- gem dos estrados em palcos onde o Orfeão teve que cantar. E assim se vai conservando nesta situação, que lhe não dá honrarias nenhumas, até ao dia do baptismo a partir do qual será finalmente orfeonista.

E o que será esta coisa de baptismos ?
Desde que entra no Orfeão o caloiro ouve, de vez em quando, falar em baptismos e começa, digamos, a fazer a sua preparação psicológica para este acto que, segundo a ideia que vai formulando, deve ser coisa medonha. Os velhos fazem terríficas narrações dessa cerimónia; referem-se profusas sodurações havidas por neófitos ao discorrerem sobre temas intrincados e difíceis dados pelos doutores; recordam-se factos de perdulários despejos de pimenta e sal na língua de caloiros que, durante o baptismo, a não quiseram só para responder com parcimónia e respeito aos doutos baptizadores ; contain-se coisas verdadeiramente singu- lares ; e, em determinada altura do ano, paira tal terror entre a manada que falar-lhe em baptismos é como fazer o sinal da cruz ao demónio...

Atingiu-se então o ponto da já referida preparação espiritual e há só, portanto, que deparar-se o momento de estar reunida a maior parte dos orfeonistas e a vèlhada para a festa ter mais brilho...
Geralmente é numa digressão que o facto sucede. Quando à incauta caloirada tudo parece correr da melhor maneira e há já propósitos de folgança e conquista, corre célere o rumor de que vão fazer-se os baptismos.

Não nos é dado dizer — embora sentíssemos ganas disso — o efeito que provoca uma notícia destas sobre certas compleições ou naturezas vagotónicas...

Reunem-se então os velhos em local apropriado ao acto e começam de resolver sobre os pormenores do protocolo e consti- tuição da mesa de baptismos. Nesta tomam lugar, pelo menos, três dos mais antigos orfeonistas que dentre eles escolhem para presidente o mais velho, sabido e lidado nestes cerimoniais. Rodeando a mesa estão os restantes orfeonistas, todos de capa traçada, o rosto cru, em geito de quem quer aterrar os neófitos. Está preparado o ambiente propício...

Um velho orfeonista, no meio do espectante silêncio, sono- ramente lê :
— que dá pelo nome de Fulano!!!...

Desconfiado e tímido adianta-se no hemiciclo o caloiro que é recebido em bom protocolo, com muitas vaias, apupos e estri- dências de sons. «Mata-se», «esfola-se», «degola-se», «enforca-se» e outras exclamações trágicas e sanguinárias vêm do meio do tumulto que se estabelece, certamente proferidas por orfeonistas de ânimo mais acirrado contra os inermes caloiros aos quais con- tudo a natureza deu — segundo reza a tradição e os doutores o afirmam — sólida e agressiva armadura...

A calvíssima mesa, perante tanto chinfrim, impõe o silêncio
e determina que o novato fique durante cinco minutos... (às vezes que longos são !) à disposição da matula. Chovem, então, de toda a parte imposições e perguntas : caloiro isto ; caloiro aquilo ; caloiro assim ; caloiro assado ; etc., et-.... E ele lá vai rebuscando, nas melhores estantes da sua inteligência (?) e graça, aquilo que na sua ideia maior agrado e satisfação possa causar aos exigentes doutores.

Muitas vezes os doutores resolvem condoer-se do modo inaudito como o caloiro se apresenta a baptismo, executando um dificílimo equilíbrio sobre os membros trazeiros, que no seu enten- der servirá para melhor conquistar as simpatias dos afidalgados doutores. Estes como não podia deixar de ser, perante tão grande e inútil dispêndio de energias, devidamente compadecidos, concedem ao caloiro o especial favor de tomar, durante o baptismo, a sua posição normal, também chamada a quatro, muito mais descansada e repousante.

De vez em quando, como em tudo, surge um rebelde, um inovador que menospreza e verbera a tradição... São-lhe aplicadas, irremissivelmente, as penalidades máximas... 

Chega por fim o momento em que se consideram satisfeitas a curiosidade e exigências dos doutos orfeonistas e a mesa, como quem quer ter uma deferência para com o neófito, diz-lhe que escolha o seu padrinho de baptismo. Este é sempre um estudante com mais de três anos de vida orfeónica e escolhido que é manda que o seu afilhado disserte, alto e bom som, sobre tema que lhe propõe, para assim avaliar se ele é digno do seu apadrinhamento. Porque há que ter em vista o facto de os doutores, muito dignos e sábios, contraírem grande responsabilidade com a aceitação dum afilhado que vem — afirma-se — das fundeiras da escala zoológica e que é tão cheio de excrecências e partes duras que, francamente o dizem, não se divisa sítio onde se acantone restea de inteligência...

Os temas são sempre muitos variados, originais e susceptíveis de provocar imensa graça, forte risota e muitas intervenções da parte dos orfeonistas. O caloiro em verdadeiros palpos de aranha, lá vai até ao fim da sua dissertação, ora dando no cravo, ora dando na ferradura, e acima de tudo muito desejoso de que toda aquela brincadeira acabe o mais depressa possível. Em determi- nada altura considera-se, por artes não se sabe de quem, o tema esgotado completamente. É chegado o momento solene do acto : O padrinho dá o nome ao caloiro e o padre ou baptizador carre- ga-lhe com água ou outro líquido bebível sobre a extremidade cefálica... Isto é o que acontece normalmente ; o resto são agruras e amargos de boca... (mete sal e pimenta!) que não vale a pena contar.

São assim os baptismos no Orfeão ; e ninguém pode fugir-Ihes... É como a sina..."


Saltando para os anos 60, Cidrais Rodrigues, orfeonista, e novamente na Revista do Orfeão, diz em Dezembro de 1962:


"Quando o Orfeão Universitário do Porto reiniciou a sua actividade no ano de 1943 existia na Universidade um movimento a favor da renovação da praxe académica, principalmente na Faculdade de Ciências, por onde, ao tempo, passavam obrigatoriamente os estudantes de todas as Faculdades, que as exigências dos programas obrigavam a frequentar pelo menos um ano nos chamados preparatórios, antes de se poderem orientar para os estudos a que os chamava a sua vocação. 

Constituindo então o O.U.P. o único organismo universitário, cujo âmbito abrangia alunos de todas as faculdades, encontrava-se, portanto, numa posição de primacial importância para orientar e coordenar esses impulsos de renovação de velhas tradições.
Logo de início, o Orfeão se manifestou abertamente contra determinadas praxes que pretendiam ridicularizar os caloiros e embora alheias às tradições da Universidade portuense alguns alunos da Faculdade de Ciências pretendiam introduzir entre nós. 

Adoptando um ponto de partida diferente, ou seja, o de considerar o caloiro como um estudante a quem falta apenas a experiência da vida académica e que portanto necessita dos conselhos amigos dos mais antigos, o O.U.P. contribuiu eficazmente para repelir a introdução no meio portuense de tradições alheias, por certo muito respeitáveis mas que nos são totalmente estranhas. 

Este conceito justificou a criação do "baptismo" a que todos os caloiros do Orfeão se submetiam alegremente e que em regra se efectuava no decurso da primeira excursão em que tomava parte o orfeonista. Considerava-se - e suponho que ainda se considera- que o facto de frequentar os ensaios durante um ano lectivo, de participar nos espectáculos no Porto e de acompanhar o Orfeão numa digressão pela província ou pelo estrangeiro conferia ao móvel orfeonista suficiente experiência para poder participar activamente nas decisões relativas ao O.U.P.. 

A cerimónia do "baptismo" foi-se codificando a pouco e pouco. Em regra encarregava-se de baptizar um dos orfeonistas mais antigos e mais conhecidos.
O caloiro, acompanhado pelos respectivos padrinhos, aproximava-se, ajoelhava e era então baptizado deitando-se-lhe algumas gotas de água na cabeça. O "baptizador" dirigia então algumas palavras em latim macarrónico que lhe ditava a sua fantasia, pois não havia fórmula fixa. No final um dos caloiros recém-baptizados devia fazer um discurso de agradecimento. 

Nesses tempos, já um poucos distantes, era costume no final registar a data e o local de baptismo nas costas do cartão de orfeonista, assinando o "registo" o veterano que presidia à cerimónia. Note-se a este propósito que de início o Orfeão usava os cartões de identidade que encontrava já impressos e que ostentavam a legenda "Orfeão Académico da Universidade do Porto" e a um canto as antigas armas da cidade do Porto rodeadas pelas fitas das cores das quatro Faculdades então existentes. Só mais tarde, uma das direcções em que fui secretário mandou imprimir cartão de identidade para os Orfeonistas com a legenda "Orfeão Universitário do Porto" e as armas da Universidade.
Nunca, porém, na tradição orfeónica o baptismo representou uma cerimónia restrictiva e o caloiro gozou sempre de todos os direitos inerentes à sua qualidade de orfeonista e recordo-me de alguns rapazes do meu tempo que, pelos seus méritos, foram encarregados pelas respectivas direcções de várias tarefas importantes antes de serem "baptizados". 

Entre os aspectos da vida do O.U.P. a praxe académica constitui uma faceta curiosa, pelo carácter original de camaradagem e boa vontade que os orfeonistas lhe souberam imprimir, fazendo do baptismo não uma "libertação", mas uma "consagração" e reconhecimento de que o caloiro se mostrava digno orfeonista e bom camarada. 

Talvez valesse a pena codificar um dia as praxes do Orfeão Universitário, de modo que mantivessse o carácter original e a integridade de expressão das manifestações mais típicas e curiosas da actividade orfeónica."


Prof. Dr. Armando Luís de Carvalho Homem, orfeonista entre 1968 e 1973, recorda:


"Basicamente, o baptismo era um «julgamento» / rito de iniciação dos caloiros. Tudo se processava à luz de velas. Presidia uma mesa, com o «professor»[1] ao centro, dirigindo, e os «doutores» como vogais[2]. A mesa e os restantes veteranos presentes («a matula»)[3] estavam de capa traçada. O baptizando ia sendo interrogado, primeiro pela mesa, depois pela matula, e, se tudo corresse bem, a dado momento o «professor» dava-lhe a indicação para escolher padrinho»; o convidado, se aceitasse, dava ao baptizando um tema para desenvolver. Também se tudo fosse bem, a mesa dava depois ao padrinho a indicação para proceder ao baptismo propriamente dito, i.e., uma fala em latim macarrónico («ego te baptizo…») incluindo o nome simbólico do neófito (eu, que tive como padrinho um então finalista de Filosofia [4], fiquei Marcus Antonius sine Cleopatra), ao mesmo tempo que lhe banhava o couro cabeludo com água, vinho, cerveja, etc.

[1] Quando presente, era por regra o inesquecível Flávio Serzedello.
[2] Lembro como particularmente assíduos na mesa Alberto Pintado, de que voltarei a falar (digo no entanto, e desde já, que foi o fundador dos Pauliteiros e, em dois mandatos, Presidente da AG do OUP), e António Afonso Fernandes (que está vivo e activo e foi Presidente da Direcção do OUP).
[3] Lembro como especialmente interventivos, por ex., Martinho Santos (anterior Presidente da AAOUP; acordeonista) e Carlos Soares (executante de viola na Tuna e nos Tangos, irmão mais novo de J. Belarmino Soares).
[4] Tratava-se de Orlando Martins Lourenço, bandolinista, actualmente professor aposentado da Fac. Psicologia / UL e a residir no Porto; membro da AAOUP.
"

Em Coimbra, onde o fenómeno parece nunca ter sido verdadeiramente abrangente e provavelmente até inexistente durante as décadas de 40, 50 e 60, já com o retomar das tradições académicas após o luto académico, é a partir dos finais dos anos 80 que se começa a observar a generalização do baptismo a caloiros, normalmente em período da Latada.

No Porto, faltam ainda dados concretos sobre se os baptismos se realizariam fora do contexto orfeónico. O que será seguro afirmar é que, pela vocação circum-escolar do OUP, o conceito de baptismo facilmente estaria com certeza disseminado entre diversos alunos de diferentes faculdades da UP. Esta disseminação circum-escolar terá, com toda a certeza, contribuído de forma decisiva para que se fosse, aos poucos, estabelecendo rituais espalhados de baptismo durante a década de 80 e, finalmente, com a institucionalização de um ritual para toda a Academia durante a Semana de Recepção ao Caloiro.